O orgulho das raízes africanas: poesia e prosa nos cadernos, murais e passarela da Escola Classe 47 de Ceilândia
Todos os anos, mais de mil pessoas que integram a comunidade da Escola Classe 47 de Ceilândia celebram o mês da Consciência Negra com danças, trajes especiais, comida típica e tecidos pintados a mão com motivos étnicos – a festa mais esperada do ano é uma mostra do Projeto Político Pedagógico que abraça os corredores, os murais e o rosto das pessoas em um sorriso no melhor estilo africano.
Em 2006, quando o professor e pesquisador Marcos Lopes propôs à equipe a eleição do Orgulho e Consciência Negra como tema central dos projetos anuais, não imaginava estar contribuindo para resgatar a autoestima da maior parte dos alunos. De família negra e habituado a ganhar dos colegas na infância apelidos como “saci-pererê’’, ele ajudou a afixar nas salas de aula o mapa que traça o caminho da colonização e indica um país da África adotado por cada turma. Quando descobriram que seus antepassados vieram do mais antigo dos continentes carregando uma imponente tradição cultural, muitos dos meninos e meninas, matriculados da Educação Infantil ao 5º ano, ganharam novo brilho no olhar. O professor, por sua vez, chegou a receber um prêmio nacional de incentivo a projetos deste porte na comunidade.
A Lei 10.639 de 2003 trouxe amparo ao propósito tornando obrigatório o ensino da História Afro-brasileira nas unidades de ensino. A Escola Classe 47 fica no setor P Sul (note-se que Ceilândia é uma cidade de maioria nordestina e seus moradores, portanto, têm vasto registro de descendência africana). ‘’Acabar com a imagem da negritude passiva’’, nas palavras da vice-diretora da escola, Andrea Faria, tem sido uma missão que já alcança as famílias dos 750 alunos matriculados ali, uma maioria de cor negra que habita nas áreas rurais vizinhas e quadras adjacentes.
O tema é abordado em todas as disciplinas. O som da capoeira pode ser ouvido nos arredores pelo menos três vezes por semana nas aulas de educação física. À menção de um prato simples como galinhada, os alunos fazem uma conexão intelectual com o ensino de História, onde souberam que o arroz chegou ao Brasil, pela primeira vez, carregado por mulheres negras; a galinha d’angola e as cores de suas penas também são um referencial para os estudos das artes, em termos de desenho. Algumas turmas deixaram a imaginação viajar nas paisagens descritas por Masaemura Zimunya, poeta do Zimbabwe. Outras fizeram de tecidos coloridos capulanas (tecido usado pela africana) para vestir. A proposta criativa só acrescenta pontos ao currículo dos estudantes, que detêm segundo lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica na região.
Para garantir o olhar sensível à causa, os professores já mandaram as crianças para casa carregando um pequeno panô para ser ilustrado por pais e filhos. No resultado, figuras de meninas negras brincando sob as árvores e de garotos trabalhando na rua com os pais comovem pela simplicidade. O corredor da ala administrativa recebeu o título afetuoso de “galeria’’ e, logo na entrada, a aquarela em que uma mãe que trança os cabelos da filha entre suas pernas remonta uma história que serve como base às diagnoses pedagógicas. Para além do prédio principal, os corredores também respiram arte, cultura, política e cidadania. Qualquer prato a princípio descartável pode ser transformado em uma máscara. Anualmente, é no pátio que institui-se a passarela para o desfile de beleza negra em que crianças eleitas por herdarem os traços genéticos de seus ancestrais africanos recebem livros, brinquedos e outros prêmios e são coroadas com turbantes gele (guelê) de cores vivas.
Nos últimos anos os professores da Escola Classe 47 de Ceilândia vêm frequentando cursos que versam sobre cultura negra. Eles atuam por cinco horas diárias em sala de aula e, uma vez por semana no horário de coordenação, sentam-se nos bancos escolares. Disciplinas como Educar na Diversidade e Memórias Africanas revelaram que o ideal da equipe merece atenção regional: hoje, coordenadores como Nádia Rodrigues, do Núcleo Pedagógico da Diretoria Regional de Ensino de Ceilândia e Carmen Batista, da Escola de Aperfeiçoamento de Profissionais da Educação, figuram entre parcerias perenes.
O encontro de todos os projetos dentro do projeto maior é chamado de culminância. As festas dos últimos anos trouxeram, à escola, integrantes africanos nascidos em Guiné-Bissau. Um deles teve sua percepção conquistada ao sentir-se em casa enquanto assistia crianças, com penteados afro, dançarem ritmos nascidos no coração de sua terra natal. Profissionais como a orientadora Luciene Rodrigues e a professora de contrato temporário Rejane Amaral deixam de lado o relógio neste dia, fixando o olhar na alegria festiva bem característica das nações africanas, que toma conta dos pátios.
O professor Marcos Lopes, que quando menino perguntou a si mesmo por que motivo havia nascido negro, anda escrevendo livros para enriquecer suas aulas, um dos quais de nome “Lápis cor de Pele’’. Como pesquisador, tornou-se colega dos mestres e doutores da Universidade de Brasília em núcleos como o de Gênero, Raça e Juventude. Em sentimento par com o orgulho de sua própria raça está o de ser professor. Ele define a si mesmo e a seus alunos como sujeitos históricos – aqueles que têm o poder de transformar a própria vida, a cidade e, por conseguinte, o mundo em espaços de igualdade. Difícil impedir as lágrimas na hora de fotografar o moço sorridente, junto ao mural escolar, que lhe faz homenagem, em trabalho de grafite de um artista local.